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Foto do escritorRebel Girl

UM LIVRO, UM CASAMENTO E A BELEZA DE SER VOCÊ MESMO

Uma carta de agradecimento ao meu eu do passado (e a Eduardo Krause)



Nesta semana em Pensamentos Sobre Livros, Brava Serena (do autor brasileiro Eduardo Krause) já diz em seu título sobre a beleza do seu conteúdo. Serena, que pra mim é a personagem principal apesar da história ser contada pelos olhos de Roberto, um setentão aposentado do ramo de seguros que decide passar seus últimos anos de vida em Roma, procurando pela face de sua falecida esposa em todos os caminhos que eles visitaram juntos na lua de mel, quarenta anos antes.

Serena é, como sua mãe no livro descreve, uma colecionadora de pessoas. Uma mulher que pula de uma aventura a outra, não de forma ruim, mas com um leve tom de superficialidade, e que registra a coleção colando as fotos de suas pessoas no teto com fita adesiva, bem em cima de sua cama, para que ela possa vê-los todas as noites.


Corte para minha vida real. Eu fechei o livro depois de ler esta parte e pousei em minha cidade natal pra visitar minha família e casar uma das minhas amigas mais queridas de faculdade. A maior parte da nossa "gangue" estava lá, muita gente eu não via há mais de uma década e obviamente nós não conseguimos evitar a nostalgia, lembrando das nossas antigas bebedeiras, correndo de um lado pro outro livremente, pouco sóbrias, dirigindo pra praia depois da aula apenas pra dar um mergulho peladas na água do mar e depois voltar molhadas no meio da madrugada ao som de Backstreet Boys. Nossa audiência foi, obviamente, nossos maridos já que eles não fizeram parte desta etapa das nossas vidas (posso dizer que o único sobrevivente do sexo masculino desta época era o noivo). E eu me senti maravilhosamente confusa ao longo da noite porque, por algum motivo, com passar dos anos, eu desenvolvi um sentimento de incômodo ao lembrar daquela época, como se ela tivesse sido maravilhosa mas errada ao mesmo tempo, e saindo da festa eu me dei conta que duas coisas aconteceram nesses quase quinze anos entre nossas experiências e aquela noite.


Uma coisa que eu realizei é o fato de que eu tenho uma ótima memória. Mesmo tendo passado grande parte da minha época de jovem adulta intoxicada eu consigo ver as imagens dos nossos lindos momentos de forma vívida, o que causa um sentimento de constrangimento tremendo já que meu antigo entendimento de moda e escolha de namorados eram duvidosos no melhor dos dias. E a segunda coisa que entendi ocorreu ao revisitar estas memórias é que existia ali envolto em cada uma delas um sentimento de culpa. Essa culpa louca, eu ouso dizer praticamente católica que eu, e tenho certeza muitas pessoas sentem, ao olhar para seus passados. Algumas pessoas que tínhamos no passado não foram trazidas para o presente, e nos sentimos culpados por amizades perdidas, Alguns momentos deste passado causaram dor a outras pessoas (muitos homens, se estou sendo honesta aqui, já que nós mastigávamos e cuspíamos um diferente a cada semana), e nós nos sentimos muito mal por isso. Os fracassos ou as cenas que causamos quando estávamos embriagadas de alegria e felicidade descabidas que agora, ao tendo passado dessa fase, nos causam vergonha.


E por quê?


"As pós adolescentes que éramos, esses seres imortais, invencíveis e que ninguém podia parar, elas não ligavam pra nada, nem deveriam. Nossos corações também foram quebrados na mesma medida, nós fomos deixadas tanto quanto deixamos e hoje eu vejo que eu só existo hoje como sou por causa de todas essas coisas. "

Estas experiências que dividimos, os corações que partimos, as pessoas que perdemos, tudo aconteceu por um motivo. As pós adolescentes que éramos, esses seres imortais, invencíveis e que ninguém podia parar, elas não ligavam pra nada, nem deveriam. Nossos corações também foram quebrados na mesma medida, nós fomos deixadas tanto quanto deixamos e hoje eu vejo que eu só existo hoje como sou por causa de todas essas coisas.

E aí, no domingo, sentada em uma cadeira desconfortável de aeroporto esperando meu voo, no meio de uma ressaca igualmente nostálgica pós casamento, tinha a Serena, essa personagem que dá nome ao livro que não pede desculpas por nada das coisas sem sentido que faz, mas que por algum motivo fazem todo sentido para aqueles que estão lendo. Era a tarde depois do casamento que me deixou com um gosto doce de juventude na boca, e eu me vi inteira nela. Também sou uma colecionadora de pessoas de experiências que só foram maravilhosas por causa das pessoas com quem eu as dividi. A junção da história dela e a minha aquele dia cimentou em mim a realidade do meu passado que foi uma bagunça maravilhosa. Lindo.


Mas no livro para cada passo de Serena tem o Roberto. Ah, Roberto...

Eu tenho que dizer o quão orgulhosa eu estou de mim por ter conseguido terminar este livro apesar do Roberto. A jornada dele da página para o meu coração foi árdua. Um homem de seus mais de setenta anos com uma mala cheia de arrependimentos e remédios que chega em Roma procurando um fantasma, a imagem de uma esposa falecida com quem ele teve um breve casamento antes dela ser levada pelo câncer. Alguém que lembra todos os prazeres e gostos de Roma mas por causa de idade e saúde se recusa a desfrutá-los. Ele não foi pra Roma pra passar seus últimos dias? Ele não estava afogado em mágoas? Se ele foi pra Roma morrer, por que ficar prolongando seus dias se recusando a viver as experiências da cidade?


Óbvio que este tanto de ódio por causa de um personagem de livro obviamente estava enraizado em algo maior que apenas isso dentro de mim. Primeiramente, o Roberto me lembrou meu pai, securitário que viveu a vida como bem quis mas passou os últimos anos da vida se lamentando e remoendo os arrependimentos do passado. Esse entendimento profundo sobre um dos motivos do meu ódio deixou meu terapeuta orgulhosíssimo. Mas mais profundo que isso é o fato de que eu tenho pouca pra quase nenhuma paciência com arrependimentos. Especialmente aqueles de pessoas de maior idade (e aqui eu posso ser julgada e cancelada que eu não estou nem aí). Porque meu terapeuta sempre diz: as pessoas vivem do jeito que vivem porque elas sentem prazer em viver dessa forma. Afinal, um masoquista se inflige dor porque gosta disso, muito da mesma forma, nós vivemos como vivemos porque há prazer na raiz de nossas escolhas. No fim, o que me pega é o potencial desperdiçado. Eu entendo como gerações passadas viam a psicanálise, um culto dos insanos, e como tabu era a mera menção das palavras saúde mental, mas eu já tenho que lidar com pessoas de carne e osso que nunca lidaram com suas questões e ainda ter que sofrer nas mãos de um personagem fictício como elas? Foi brutal, mas um brinde a Eduardo Krause por escrever um personagem tão insuportável, e por dar a ele a sua única redenção possível: através de Serena. E segui na luta.


"Mas saber que aquilo que fizemos era o máximo que era possível é saber o quanto tínhamos para dar para começo de conversa, quais eram nossas limitações e as limitações do nosso tempo. Pouquíssimas pessoas sabem isso sobre si mesmas, a maioria se espelha em outros e cobra de si que tivesse sido mais, feito mais."

No entanto, à medida que eu me aproximava dos capítulos finais eu cheguei a conclusão de que talvez estas páginas não se tratassem de arrependimento, afinal. Ao final do breve encontro de Serena e Roberto eu fiquei feliz em perceber que apesar de Roberto ter querido manter contato com sua filha e que sua mulher não tivesse morrido tão nova, ele diz uma, duas, muitas vezes que ele fez o melhor que pode com o que ele tinha, apesar de não ter sido muito ou lá essas coisas, e não é assim que funciona para maioria das pessoas? Um pouco de medo, algum senso de certo e errado e muita influência das pessoas que nos criaram e do lugar onde nascemos. Mas saber que aquilo que fizemos era o máximo que era possível é saber o quanto tínhamos para dar para começo de conversa, quais eram nossas limitações e as limitações do nosso tempo. Pouquíssimas pessoas sabem isso sobre si mesmas, a maioria se espelha em outros e cobra de si que tivesse sido mais, feito mais. Mais do que se é. Roberto não é assim, não é nada como imaginei naquelas primeiras páginas, um homem com um grande aviso em frente a testa escrito "como não envelhecer". Ele pode não ter colecionado tantas pessoas ou experiências como Serena (ou eu), mas isso não faz a vida dele menos satisfatória, nem a nossa vida de colecionadores uma vida superficial.

A história é sobre a beleza deste encontro, de quem é louco com quem é mundano, é aí que o livro se tornou especial pra mim. Um livro que junto a um casamento me ajudaram a reviver e sentir orgulhosa do meu passado, de ser quem sou hoje porque esse passado existiu, e não apesar dele.

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