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MODUS OPERANDI E A NEUROSE LATENTE

Um bolinho Ana Maria, um podcast e as mentiras que contamos a nós mesmos


Um grande clichê moderno (da qual faço parte, portanto lugar de fala) é o da mulher que consome True Crime para se acalmar. Sim.

Até outro dia eu achava que essa trope era senso comum, mas eu vivo me surpreendendo com a existência das "bolhas" de conteúdo em que as redes sociais nos envolveram, e, para minha surpresa, não apenas o tema mas o fato que estabeleci anteriormente não são de conhecimento geral.

Portanto, aqui vão algumas definições. O True Crime, ou crime real, é um gênero documental de conteúdo que trata de (surpresa, surpresa) crimes reais, em todos os seus detalhes, o assassino, suas formas de matar (modus operandi), o assassinato assim como as investigações e que fim tiveram. Quando bem feito, e não espetacularizado (como num Cidade Alerta da vida), ele relata todos os acontecimentos com muito respeito às vítimas (principalmente) e a todos os outros envolvidos, sem romantizar o crime ou o perpetuador.

Se acalmar. Outra definição muito necessária em 2024, quando 30% dos trabalhadores brasileiros estão sofrendo de Burn Out, ou seja, pode significar muitas coisas. A minha definição, bem mais afunilada do amplo espectro da palavra, é a de evitar me deixar levar por ansiedade descontrolada, seja no âmbito social ou no âmago da minha varanda, com um celular na mão sendo cobrada via Whatsapp os mais variados assuntos.

Tudo começou quando eu cedi ao que todos os meus amigos vinham falando há alguns anos (em específico após a pandemia): cogitar a prática de exercícios físicos. Minha ideia de atividade corporal se restringia aos passos que eu dou do meu computador no home office à jarra de café na cozinha, e às muitas idas a minha varandinha recém conquistada para entupir meus pulmões das mais de 4700 substâncias que constam na lateral da minha caixinha preta de marca (que não será nomeada). Nos dias em que precisava fazer grandes burocracias na rua, essa grande atleta aqui se vangloriava quando andava surpreendentes 2,5km que meu reloginho inteligente me contava, pois essa era a meta de cardio que eu setei nele (fontes para setar esses números: vozes da minha cabeça).

Mas quando uma pançona surgiu, oriunda de litros de álcool e quilos de doces, bebidos e comidos entre 2020 e 2022, meu corpo começou a dizer que não ia caber mais em calças e que abaixar e levantar eram meu novo desafio diário. O tapa final na minha cara foi ver uma mulher de 64 anos que fazia esses pequenos esforços sem um gemidão de desconforto, algo que pra mim, uma 30+, parecia ser 100% natural.


"O tapa final na minha cara foi ver uma mulher de 64 anos que fazia esses pequenos esforços sem um gemidão de desconforto, algo que pra mim, uma 30+, parecia ser 100% natural."

Ok. Qual exercício? De todas as mil possibilidades (todas advindas do Instagram), escolhi o treinar, porque eu não vejo necessidade de levar essa pançona pra correr na rua e destruir meu querido joelhinho com o excesso de gostosura da minha parte superior. Também não ia fingir que rodopiar ao redor de um pau metálico é algo que eu consigo fazer há essa altura do campeonato, e não ganhei na loteria pra fazer pilates. A ideia era ser saudável, isso é o que todos me falavam. "Vamos todos envelhecer bem". Tão lindo! Mas no fundo eu estava é "Que saudável o quê?", minha intenção desde o início foi "Ser uma grande gostosa". Por que me enganar? Eu fumo, pelo amor de Deus.

E lá estava eu, na recepção da academia no meio de corpos enormes, sarados, suados, cheios de gomos e fofinhos rígidos em locais onde eu tinha uma pelanquinha, que sem muito esforço eu conseguia balançar enquanto andava. E eu sur-tei. Se eu estivesse sozinha fazendo aquela inscrição eu não teria feito.

Eu sou muito agradecida que meus anos de experiência de trabalho me treinaram praquele primeiro dia, porque minha cara não mostrava meus pensamentos. "Ela está levantando quantos quilos????" e "Por quê os mamilos daquele moço estão aparecendo?". O pior momento foi quando eu fui abordada por uma pessoa querendo revezar meu equipamento e eu me senti extremamente possessiva e disse não, sem saber que a pessoa ia continuar do meu lado esperando eu acabar, o que completamente inviabilizou o término do meu exercício porque, ao saber que estava sendo observada, meu fiofó travou e eu esqueci completamente o que eu tinha que fazer.

Eu estava ouvindo música no fone de ouvido. Eu imaginei que todas as playlists de pop que eu cuidadosamente cultivei ao longo dos últimos 5 anos no app verde finalmente teriam seu momento de glória, seu propósito cumprido. E sim, eu andei naquela esteira como a diva da passarela ao som de Ariana Grande. Foi um grande momento.

Mas horas depois, com dor e desconforto em músculos que eu não sabia que tinha, eu lembrei de todo momento cringe que eu passei, de todos os horrores que tinha visto e já estava arranjando um milhão de desculpas para não ir no dia seguinte, e coloquei meu seriado de conforto pra tocar, Mindhunter. Aquela musiquinha de entrada me coloca pra dormir.

Foi quando eu percebi que se eu quisesse passar por aquela transição eu teria que contar com aquilo que me traz conforto. Eu não sou uma pessoa que quando se força a estabelecer um novo hábito consegue simplesmente pela força do ódio. Se eu não amar, eu não vou voltar. Se eu não comer um pacotinho de Ana Maria de baunilha no caminho de volta pra casa, por que eu estou fazendo essa tortura comigo mesma? Pensar no "ser uma grande gostosa" é um sonho que não me leva muito longe. Então, eu substitui Ariana Grande pelas vozes calmantes de Mabê Bonafé e Carol Moreira. E meus dias de academia mudaram.

Ed Kemper, John Wayne Gacy, O Maníaco do Parque, O caso Matsunaga, esses foram meus companheiros diários enquanto eu fingia que não via o senhor nojento se abaixando na minha frente pra tentar ver por dentro do meu short, ou o bombaner rindo dos meus 10kg que eu tava puxando no aparelho da barra e da cordinha que eu nunca vou aprender o nome. Depois de algumas semanas, eu nem via mais as pessoas, eu ia de um exercício ao outro imaginando cada cena descrita, chocada com o nível de crueldade que alguns seres humanos são capazes de chegar. Simplesmente, calma.


"Ed Kemper, John Wayne Gacy, O Maníaco do Parque, O caso Matsunaga, esses foram meus companheiros diários enquanto eu fingia que não via o senhor nojento se abaixando pra tentar ver por dentro do meu short, ou o bombaner rindo dos meus 10kg que eu tava puxando no aparelho da barra e da cordinha que eu nunca vou aprender o nome"

E o hábito se formou. De uma forma tão dura que clicar no podcast já me induzia a botar a legging. Eu cheguei a me vestir em um domingo a tarde depois do play, esquecendo completamente que o estabelecimento não abre nesse dia.

Tudo lindo. Tudo ok. Sobe os créditos e toca a musiquinha do Arnold.

Não. Porque essa cabecinha aqui não sossega. Quatro meses de treino e homicídios eu começo a me sentir meio blé. Não sei descrever o sentimento com outra palavra. Se eu acreditasse em energias negativas eu poderia estar falando aqui de como ouvir muito tempo sobre violências diversas desalinhou meus chacras (e não é porque eu não acredito que não tenha desalinhado mesmo), mas eu vou só espiralando, e ao invés de tentar qualquer outra coisa, eu simplesmente vou definhando, malhando com ódio e voltando pra casa, trocando o bolinho Ana Maria feliz por uma long neck de Heineken, olhando meu panção no espelho, que já diminuiu bastante, mas não como eu acho que deveria, gostaria que tivesse. Em minha defesa eu não parei de ir. O "já paguei" faz um efeito enorme, mas o gostar se perdeu completamente.


Na minha neurose.


Fim de pós graduação, instabilidade financeira, aquecimento global, o preço do azeite, essas questões estavam na minha cabeça (e talvez na de muita gente), mas eu comecei uma atividade nova e eu nem parei pra pensar que essas coisas de fundo foram caladas subitamente por um podcast. Sim. Eu calei a boca do meu cérebro com assassinatos e atrocidades diversas. E quando só o podcast não foi suficiente, eu comprei o livro, pra entender tudo mais a fundo.

Entenda, eu sempre fui uma grande fã de True Crime. Você não chega ao ponto de dormir com a musiquinha de entrada de uma série, entrada essa que tem flashes de cadáveres a cada 2 segundos e meio, sem se interessar pelo assunto. Mas antes de treinar era um interesse esporádico, um documentário aqui e outro ali.

Eu entrei de cabeça nesse mundo, segui hashtags no Instagram, descobri que existe uma comunidade de pessoas como eu e me juntei a elas. Eu nunca consumi nada com tanta rapidez ou tanta voracidade.

É um testemunho sobre a qualidade do conteúdo dessas mulheres. Nada nunca fisgou meu interesse de tal forma. Mas se eu parar bem pra pensar, se eu fosse outra pessoa, com outros góstos (ouça a palavra na sua cabeça com acento mesmo), o True Crime não seria qualquer outra coisa? Não seria creatina e Whey e uma rotina regrada de horários e alimentação? Não seria um podcast sobre educação financeira? Entenda, eu não estou comparando o conteúdo maravilhoso, pesquisado com dedicação e maravilhosamente roteirizado de Modus Operandi com Whey ou investimento em criptomoedas. Pelo amor de Deus não! Só o meu espiral de atenção, que mascarou durante um bom tempo aquilo que eu ainda não queria lidar.

E agora, cheguei aqui. Aonde exatamente? Eu não tenho certeza. Depois de um fim de semana enfiado embaixo de cobertas, questionando os por quês de 99% da minha existência, de uma forma bem dramática, sem entender por que de tanta apatia e tristeza, eu emergi confusa, mas com algum ânimo. Há cinco dias eu deixei as meninas de lado e estou morrendo de saudades, mas ontem sentei no trequinho de empurrar peso com a perna com a voz de uns meninos que ficam falando sobre trending topics da semana entre bobajadas inconsequentes. Nunca foi sobre o conteúdo, né?

Hoje eu comprei um bolinho de baunilha. Vamos ver...


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